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  • Foto do escritorEsther De Souza Alferino

Tóxico is the new recalque


Eu não sou psicanalista e li quase nada de Freud e companhia, mas eu fico me perguntando o que ele, Freud, pensaria se estivesse no Brasil da década de 2010, vendo a palavra “recalque” ser usada como foi.

Recalque, o conceito psicanalítico, não é sobre inveja ou gente invejosa, mas pode ser, já que as coisas que recalcamos podem ser, inclusive, a vida alheia que desejamos. Mas, segundo o conceito, recalque é sobre as coisas que reprimimos do nosso consciente, por medo, por autodefesa... Somos todos recalcados, todos nós escondemos no nosso inconsciente alguma coisa penosa.

A palavra foi tirada de contexto, banalizada, ok, acontece. Mas o que acho mais sintomático nisso, lembrando mais uma vez que não sou psicanalista e sei muito pouco sobre isso, é tanta gente se sentir invejada e invejável. O Facebook foi invadido, uns dois, três anos atrás, por tantos posts sobre gente recalcada, que realmente parecia que aquelas pessoas que estavam reclamando do recalque alheio, tinham vidas muito invejáveis. Em muitos casos eu ficava me perguntando: mas gente, o que essa pessoa anda pensando que todos invejam nela? Seu aperto financeiro? Seu relacionamento falido? Seu celta branco, duas portas, ano 2001, ainda sendo pago? Sério, o que é assim tão invejável nas nossas vidas? Nosso português mal escrito, nossa pele cheia de cravos, nosso cabelo precisando de hidratação, nossos problemas emocionais não resolvidos??

Aparentemente essa moda passou. Já não se manda mais indiretas pras recalcadas (porque sim, a maioria das vezes era no feminino) como se mandava uns poucos anos atrás. Agora a moda é outra e tão incompreensível pra mim quanto a anterior. A moda agora é chamar todo mundo de tóxico.

Acho que as relações, os trabalhos, as universidades, as pessoas, todas receberam uma rosa de Hiroshima pra chamar de sua, porque todo mundo virou tóxico. Assim como o conceito psicanalítico do recalque, a palavra foi tirada de conceito e banalizada.

“Um trabalho onde eu realmente tenho que trabalhar? Lugar tóxico!”, “Uma universidade que me exige leitura de textos? Professores tóxicos!”, “Uma pessoa que desabafou um problema íntimo que lhe causa muito sofrimento? Pessoa tóxica, acabando com a minha vibe!”, “Um relacionamento onde deve existir sinceridade? Namoro tóxico, não sabe nada sobre liberdade!”.

Ou as pessoas passam férias em Chernobyl e só conhecem pessoas por lá, ou isso está sendo muito banalizado, de uma forma que, pra mim, parece um desserviço, assim como o “bonde das recalcadas” foi.

Banalizar isso significa banalizar relacionamentos que de fato são abusivos. Demoniza e estigmatiza ainda mais doenças mentais, jogando a saúde emocional de muita gente doente no lixo, porque os “good vibes” acham que as pessoas precisam enfiar seus problemas no cu pra não atrapalharem a energia da florzinha do campo. Banaliza ambientes em que realmente existe abuso de poder, assédio de todos os tipos, deslegitimando o sofrimento e a luta de quem de fato vive assim, porque parece que, pra uma determinada geração que costumam chamar de millenial, trabalhar e estudar, por si só, é tóxico. Todos os códigos e contratos sociais são tóxicos. Tudo que foge da ideia de positividade eterna, de obrigação de felicidade e falsa leveza em tudo, é tóxico.

Ai gente, sinceramente, me faltam palavras pra descrever a falta de paciência que eu tenho pra isso, assim como eu tive pro recalque, e isso não tem apenas a ver com tirar as palavras do contexto, desconsiderar os conceitos; até porque muita gente de fato ignora, e não porque quer, mas porque não tem a oportunidade de aprender sobre o que se trata. Minha falta de paciência é com a facilidade de jogar pro outro, sempre pro outro, sua própria miséria, sua própria falta de comprometimento com o que faz, sua falta de vontade de viver como todo mundo vive em sociedade, sob normas, regras, códigos.

Nem todo trabalho, nem todo curso universitário, nem toda pós-graduação, nem todo namoro, é tóxico, as vezes você é só um preguiçoso que não gosta de trabalhar, estudar e ter responsabilidade emocional mesmo. Inclusive, nenhum é tóxico, porque nenhum deu um mergulho nas piscinas do reator de Chernobyl, alguns são abusivos, violentos, e tem gente conseguindo banalizar isso.

Florezinhas do campo, vamos tomar uma castanha-do-vamo-parar, seus ridículos. Tóxico é o seu preenchimento labial, o tomate que a gente come, o doce que mantém sua vibe lá em cima na festa trance.

Beijos de quem almoça urânio e plutônio e chama pessoas de ridículas.

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