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  • Foto do escritorEsther De Souza Alferino

No Instagram até ativismo usa filtro.

Sempre que sobe uma nova hashtag sobre alguma questão social eu torço o nariz. Eu confesso que até aderi a algumas, mas cada vez gosto menos, porque a cada dia mais me torno uma senhora ranzinza que implica com tudo e problematiza as problematizações. É que começou a ficar meio óbvio que não “somos todos fulano”, e jamais seremos. Acho que a pá de cal foi

o Luciano Huck com o “somos todos macacos” dele, pra vender camisa, e eu fico cada vez mais sem estômago pra engolir o ativismo de Instagram.

Nós não “somos todos Dandara”, porque a maioria de nós não faz ideia do que é ser Dandara, e a maioria de nós não tá nem aí pra tentar dimensionar como era viver a existência dela, e essas campanhas servem muito mais pra esvaziar de sentido quem foi Dandara do que pra demonstrar empatia por ela. Até nessas horas queremos o protagonismo, e aí precisamos dizer que somos algo ou alguém pra tentar demonstrar que nos importamos. Aí você pensa: “mas isso é apenas simbólico, cê é chata mesmo né?!”, sim, sou chatona, e acho que nossos simbolismos precisam ser mais refletidos, coisas que hashtags que sobem dois minutos depois da veiculação de uma notícia não permitem.

Outro dia eu disse, e repito, que “mexeu com uma, mexeu com todas” é uma das maiores mentiras já contadas, por muitos motivos diferentes, mas principalmente por não sermos um pacote só por sermos mulheres, e que nossa diversidade guarda desigualdades abissais, então mexer com a Luciana Gimenez não é o mesmo que mexer comigo, muito menos do que mexer com a moça que limpa a privada que você suja e você nem sabe o nome, porque você salvou o contato no whatsapp como “Faxina”, ou na empresa que você trabalha você usa o termo “tia da limpeza” e acha super de boa conviver com alguém por cinco dias na semana, durante três anos sem saber o nome dela.

Quando subiu esse absurdo de hashtag, #mexeucomumamexeucomtodas, a acusação era de assédio sexual gravíssimo, sofrido nos bastidores de uma novela, e acharam por bem chamar isso de “mexer”, o que por si só já é um horror, mas ficou super bem na fita das feministas Vogue Brasil, prét-à-porter, que precisam demonstrar um mínimo de engajamento, porque né, os tempos pedem, mas se aprofundar em entender a raiz do comportamento assediador e o combater de dentro das estruturas, aí já é demais né.

O mesmo pros esquerdomachos. Engajadões, parabéns, militou, pegou plaquinha, usou hashtag, tirou foto com cara de boladão com frase de efeito, aí na hora de dar nome aos bois pula fora, porque né, não pode expor as pessoas assim.

Uma hashtag pode virar um movimento, me too, black lives matter... mas pra isso tem que sair do Instagram e fazer alguma coisa na vida prática. E ainda assim não inclui todos, ou vocês acham que o #metoo é sobre eu e você? Não digo com isso que o uso das redes, especialmente por quem tem grande alcance nelas, é inútil e tem que acabar. Quero dizer que a gente não pode nivelar tão por baixo assim e viver de ecos vazios de todo dia uma militada diferente na internet, mas quando alguém vem na vida real nos dizer que aquilo está acontecendo, a gente perguntar se a pessoa tem certeza, ou se não tá confundido as coisas, ou perguntar se ela realmente acha necessário acabar com a carreira toda de alguém por conta de um erro.

Eu hoje perdi uma hora da minha vida assistindo a entrevista que o Marcius Melhem deu ao uol. Tinha um bando de coisas previsíveis ali, mas quis ver pra saber de que forma ele colocaria as coisas, e ele vem citar sei lá quem que escreveu para homens assediadores, dizendo que as vezes a gente acha que assediadores são maus, e que na verdade muitos são boas pessoas que comentem um erro, e que esse erro não os define. Disse isso tentando fingir um choro, que não veio. Concordo que temos que nos desfazer do estereótipo de que quem abusa e agride é monstro, porque já tá mais do que provado que não é. Que geralmente são pessoas que conhecemos, convivemos, as vezes até admiramos, que vivem uma vida comum, e que cometem atrocidades. Mas, pera. Os erros não te definem, cara? Mesmo quando eles demonstram um padrão de comportamento? (Que ele nega, claro).

Raramente homens se posicionam de forma incisiva sobre assédio e abusos sexuais, porque existe ali um medo de ser o próximo a ser enquadrado. Hoje é ele, amanhã é você, porque alguém pode desenterrar alguma coisa, e os caras realmente temem isso. Vai além do simples pacto masculino de apoio mútuo, tem uma boa dose de medo de um dia “””ser mal interpretado”””. Mas quando surge um padrão, quando tem dez pessoas falando a mesma coisa da mesma pessoa, quando as histórias começam a bater, não tem pra onde fugir né. As pessoas não entraram em surto coletivo, não estão em uma conspiração maledicente, não estão interpretando errado. Elas estão reconhecendo e apontando pra um abusador. Nas palavras de Marcius Melhem, um abusador serial, que ele nega ser.

Somos todos escrotos em algum momento da vida, e de fato isso não deveria nos resumir. Entre a teoria e a prática existe o correr da vida. Mas não dá pra cair no papo de “a vítima aqui sou eu” de uma pessoa que recorrentemente usa seu poder (seja lá qual for) pra se impor sexualmente.

Muito me entristeceu tudo que li e ouvi essa semana, por tudo que essas mulheres passaram e passam, por todo o silêncio conivente, por saber que os próximos passos delas serão ainda mais dolorosos e difíceis, mas também por ver de que forma isso repercutiu. De que maneira vazia e pobre estamos lidando com questões complexas e sérias. Que pobreza desse ativismo do lacre, que não pode deixar passar nada sem fazer um cartaz e uma hashtag, mas que não reflete profundamente sobre nada. Que esvaziamento das pautas tem acontecido com essa adesão chique e sofisticada dos ricos e famosos, que inclusive conseguem capitalizar em cima disso, vendem camisa, caneca, mas não vão depor em um processo, porque aí é envolvimento demais.

Também me entristeço pelo uso da imagem de uma mulher que se expôs porque precisa, pra virar símbolo de força e coragem. Gente, para com isso. Não é força e nem coragem que nos move pra esse lugar, é falta de opção, é a mais completa falta de esperança, é a dor profunda, é o medo avassalador. Ela é forte? Sei lá, não conheço, mas provavelmente é. Mas isso não tem a ver com a força dela. Ou vocês acham que as denúncias na maior parte dos casos custam a aparecer por quê? Por que estamos reunindo coragem? Por que estamos acumulando força? Demora porque a gente passa um tempo achando que ficou doida, outro tempo achando que foi a culpada, outro tempo buscando ajuda, porque sozinha não dá, outro tempo tentando denunciar e não conseguindo, porque esse carrossel não para de girar pra te acolher, e querem mais é que você se embole e caia, mas caia de boca fechada. Quando finalmente uma denúncia se torna pública, a denunciante está apenas exausta. E vai precisar enfrentar toda a engrenagem que foi feita pra proteger os abusadores. Sair viva no final já é vitória, porque inteira eu acho que ninguém sai.

Depois vai ter a parte que você vai ser tornar totem de abuso, e vai passar boa parte da sua vida explicando aos seus amigos que depois do não tudo é assédio, e que se a menina estiver “fazendo doce”, azar o dela, porque ele deve entender o não como não e seguir em frente. E você vai ser chamada pra falar publicamente sobre isso, e as vezes vai sentir que você não está existindo para muito além daquele episódio específico da sua vida. Se o abusador tem medo de ser definido pelo o que ELE fez, a gente já sabe que vai ter boa parte da nossa vida definida por ter aberto a boca sobre o assunto. Você pode ser a Xuxa, se um dia você resolve falar que foi abusada, o assunto sempre vai voltar, sempre vão exigir de você respostas, sempre vão exigir de você posicionamento sobre cada novo caso, e foda-se quem mais você é.

Eu não quero que isso defina minha vida, mas eu também não quero ver o assunto ser tratado como mais uma foto a se postar no Instagram, sem que haja nem um milímetro de mudanças nas estruturas que permitem que isso aconteça. O engajamento não pode vir em cápsulas, nem em gomas mastigáveis; se só serve pra fazer barulho por nada, está servindo a quem interessa manter tudo exatamente como está.

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