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  • Foto do escritorEsther De Souza Alferino

Torto Arado e eu

Ontem teria sido aniversário do meu avô. Ou talvez seria

amanhã. Eu não tenho certeza, hoje é do meu tio, que tem o mesmo nome dele, e eu nunca me lembro se o do vô era um dia antes ou um dia depois. Dia 20 é dia de São Sebastião, e certamente meu avô tinha esse nome por isso. Se vivo, meu vô faria 109 anos. Eu guardo a idade dele por dois motivos, ele morreu aos 85, e ele nasceu um ano após o desastre do Titanic. As associações que nossa memória fazem às vezes não têm exatamente muito sentido.

Semana passada li Torto Arado, do Itamar Vieira Júnior, e ainda estou atravessada e profundamente tocada por essa obra tão linda e dura. O Brasil profundo, os brasileiros desse lugar perdido no tempo e na história me emocionaram imensamente. O livro é sobre a história das pessoas negras nas profundezas do Brasil rural, é sobre aquilombamento, sobre memória, fé, ancestralidade. É a história de duas irmãs e uma encantada, e é a história de um povo inteiro, que ainda é pouco contada. Por isso aqui eu peço, humildemente, mesmo sabendo que o autor nunca vai ler isso, mas peço, ainda assim, licença para falar da minha família, a partir de tudo que me causou a leitura de Torto Arado.

Minha família é branca. Meu avô Bastião Barbudo trazia em si traços fenotípicos que indicavam “miscigenação”, mas nós não fazíamos ideia de nada dessa história. Não temos certeza exata de onde o vô nasceu, por eliminação, pensamos que pode ser em alguma roça na região que hoje é o município de Italva, mas nunca saberemos de fato, os registros são imprecisos e quase não temos documentos. Meu vô não falava absolutamente nada sobre a vida dele antes da minha vó. O pouco que sabemos a mãe dele que contou, mas ela se foi cedo, e também, pelo que eu soube, não era exatamente uma contadora de histórias.

De todos os lados, materno e paterno, eu não faço a menor ideia de onde viemos. O que eu sei é que estamos em Itaperuna há tempos, meus pais, tios e tias nasceram lá, meus avós se casaram lá, mesmo tendo nascido em outras partes. Minha avó materna nasceu em Caratinga em Minas Gerais, mas pelo que eu soube foi por conta de um breve tempo que meus bisavós moraram por lá, ao que parece somos originalmente da região de Itaperuna. De parte de pai também, a única que dizia ter nascido em outro lugar, Santo Antônio de Pádua, município vizinho, era minha bisavó Conceição, mãe da mãe do meu pai.

Meu vô Ciro, pai do meu pai, tinha traços fenotípicos que também indicavam “miscigenação”, mas com povos nativos, e ele tinha uma história, como acho que quase toda família da região tem, de uma avó índia pega a laço. Em Torto Arado era pega em dente de cachorro. Dificilmente alguma avó dele foi pega a laço, mas acredito que essa seja uma maneira de demonstrar que essa mistura só se deu a força.

Minha família branca certamente veio de algum lugar da Europa, e eu vejo como algumas pessoas conseguem traçar essas linhas até chegar ao navio em que desembarcou seu antepassado. Na minha família isso se mostrou impossível, o que me leva a crer que essa gente chegou aqui há tanto tempo, fazendo parte de alguma forma de colonização desenfreada, que jamais conseguiremos saber de onde viemos de fato.

Esse país sem memória, que é especialmente o país das pessoas que tiveram seus antepassados arrancados à força do seu lugar, sem direito a nome, a registro, a nada, é nesse país que também se forja a história da minha família.

Eu não consigo refazer nossa genealogia para saber quem foi que subjugou mulheres negras e indígenas para que se formasse a nossa prole. A minha bisavó tinha exatamente o mesmo sobrenome do meu bisavô. Eles eram primos? Ela só foi registrada ao se casar? Não sei. O que sei que ela foi casada, não casou, foi casada, aos 12 anos, com um homem bem mais velho, meu bisavô, mas ele não faz parte da história, não sei que fim teve e como ela se livrou dele. Buscar o nome dele em site de genealogia é encontrar dezenas de José Rangel de Souza, e não fazer ideia de qual daqueles era esse homem mais velho que casou com uma menina que queria brincar, e fez nascer meu avô.

Meu sobrenome paterno, tão incomum, parece ser tão fácil de rastrear. Sempre que tentei dei em becos sem saída. Outra lenda além da avó pega a laço é que Alferino veio da Itália. Mas veio quando? Quem foi o primeiro a ir parar nas bandas do noroeste fluminense? Ninguém lembra desse antepassado? Os italianos não chegaram aqui há tanto tempo assim, até meu vô Ciro se lembraria de um avô carcamano. Ultimamente eu tenho pensado que é mais um sobrenome inventado, inventado por gente que não tinha nome pra deixar pros filhos.

Torto Arado não é sobre uma família como a minha. Não é sobre a formação da branquitude pobre desse país. O Brasil de Torto Arado não é o meu, e nunca será. Encontrei generosidade tão grande em cada linha, que me permiti pensar em mim. A literatura acho que tem disso... Mas preciso pedir licença pra vir aqui e pensar de onde eu vim, a partir de todos os impactos que esse livro me causou. Pedir licença pra lembrar do vô Bastião Barbudo, vaqueiro de profissão, que arou terra desde os 7 e faria 109 ontem ou amanhã. Licença pra lembrar do vô Ciro, que aprendeu o ofício de pedreiro quando precisou deixar o arado da terra, porque não dava mais pra sustentar a família com o que tirava da roça.

Eu sempre quis saber de onde vim, mas nunca consegui. Fazer um exercício de Antropologia com minha própria árvore genealógica foi um desafio horrível, não consegui ir além dos meus bisavós. Por fim, eu me conformo em saber que sou neta do Bastião Barbudo e do Ciro. O que muito me honra.

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