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  • Foto do escritorEsther De Souza Alferino

Do medo de tudo, ao medo de (quase) nada

Minha irmã, que é mãe de um menino de 3, lê, estuda e pesquisa muito sobre bem-estar infantil, saúde física e mental da criança, alimentação equilibrada, comunicação não violenta e muitas outras coisas que as mães do século XXI acessam de maneira impensável lá pelos idos dos anos de 1980, quando eu nasci, mesmo que lá algumas das ciências por trás de toda essa dinâmica de outra perspectiva de infância já existisse, era para o acesso de poucos. Pois bem, minha irmã que é mãe no século XXI estava falando sobre medo, sobre o medo que as crianças sentem. Certamente ela pesquisou algo sobre isso e no meio ela contou uma história que é minha, uma entre tantas.

Eu fui a criança mais medrosa que eu já conheci. Eu tinha medo de escuro, pânico seria uma palavra melhor. Na minha casa a luz da cozinha ficava acesa a noite toda e meu estado de espírito estava sempre tão sobressaltado, que se faltasse luz no meio da noite e ficasse tudo escuro eu simplesmente acordava na hora. Isso se eu tivesse conseguido dormir, porque eu também tive uma insônia bem forte na infância, talvez hoje eu pudesse receber um diagnóstico de terror noturno ou algo assim, na época eu fui ao médico, tomei maracujina e fui a muitas reuniões de oração, mas continuava com problemas sérios pra dormir, e quando dormia geralmente ficava sonâmbula. Pois é, estar perto de mim quando eu era criança deveria ser uma merda, você deve estar pensando, e eu realmente acho que era, e quem realmente viveu isso foi a Raquel. Só um ano mais nova, ela fazia o que dava pra me apoiar. Muitas noites semiacordada pra não me deixar sozinha, algumas palavras de conforto desajustas e a presença constante no meu medo.

Eu também não andava de elevador (não ando até hoje, depois de anos descobri que sou claustrofóbica severa, e aí essa é outra história) e ir a qualquer prédio se tornava um transtorno desde o momento que eu sabia que teria que ir, porque eu já antecipava todo o terror e não pensava em outra coisa, nem sempre alguém se dispunha a ir de escada comigo e eu também achava a escada assustadora... um ciclo de boca seca, mão suando, corpo gelado, coração batendo na goela, sensação de morte iminente.

Eu chorava quase todos os dias. Não suportava as zoações, não controlava meus medos, tinha angústia e melancolia constantes e chorava, chorava muito. Em público, escondida, escandalosamente ou baixinho. Rápido e fácil caminho pra se tornar “a doida da casa”, histérica e fora de controle. Esse blog não tem esse nome a toa.

Passei anos remoendo tudo e sentindo mágoa de muita gente, gente que fez o melhor que pôde e gente que fez seu pior, porque o pior é só que algumas pessoas têm a dar. Associei choro a fraqueza e por muito tempo parei de chorar, as vezes nem quando tentava eu conseguia, e tem horas que só um bom choro alivia, mas eu não achava que deveria ter alívio, porque eu cismei que seria forte, destemida, intrépida e que eu tomaria as rédeas da minha vida.

Foi assim que eu fiz péssimas escolhas, e outras muito boas, foi assim que encarei o mundo dos adultos bem cedo, porque eu queria ser adulta, eu tinha ânsia por controle e autonomia, e essa era só uma das partes que eu odiava no fato de ser criança. As pessoas tem saudade da infância, eu não tenho nenhuma. Nunca fui despreocupada e brincante, eu era um pequeno ser ansioso e melancólico que queria falar com adultos, mas que adultos não levavam a sério porque era pequena demais pra ser levada a sério.

Vinda do medo de tudo me sentia tão fraca e inútil, que eu queria não ter medo de nada, de ninguém, de situação nenhuma. E lá estava eu, nos primeiros anos da vida adulta saindo de uma condução pra entrar em outra, altas horas da noite numa cidade grande e violenta, sem medo nenhum, ou talvez sem noção do perigo, vivendo minha vida de gente grande corajosa.

Por um tempo acho que funcionou. Por um bom tempo eu realmente consegui isolar um tanto de sentimentos, criar as barreiras exatas pra que eles não passassem que eu me tornei uma casca dura e grossa, bem difícil de se abalar. Depois eu percebi que talvez minha casca fosse meu recalque (não o da música da Valeska, o do Freud mesmo) e que se desmoronasse eu tava f*dida, e certamente aquilo estava condenado a desmoronar.

Vivendo uma vida de adulta há mais tempo que a maioria das pessoas da minha idade, eu deixei a casca cair, e fiquei completamente desprotegida. O sofrimento psíquico talvez de uma vida inteira veio à tona e sintomas que eu não experimentava há duas décadas voltaram e trouxeram junto outros sintomas que eu já não podia mais manejar sozinha.

Eu não fui negligenciada na infância. Eu venho de uma família estruturada emocionalmente, que me ama incondicionalmente e que sempre me apoiou. Mas eu sou sim fruto do meu tempo, da minha classe social, em que a sobrevivência era mais urgente do que um monte de coisas. Psiquiatra era médico de doido sim no imaginário das pessoas da minha classe nos anos 80 e 90. Buscar explicação espiritual era sim natural, mesmo para pessoas que valorizavam a medicina e seus enormes benefícios. Nada na minha vida tem a ver com negligência familiar. Tem a parte dos parentes horríveis, mas eles não são família, são parentes horríveis que muitas vezes me humilharam e trataram mal, e sim, isso me fez sofrer, mas também me fez descobrir cedo e com bastante firmeza que compartilhar com alguém o mesmo sangue pode não significar muita coisa e ok, não sou obrigada a amar pessoas que me maltratam, eles só são parentes, não são família.

Cada criança é um universo inteiro, que inclui medo, umas coragens sem noção, sonho e fantasia, mas que também pode incluir insegurança, angústia e melancolia. A maneira que tratamos o medo de uma criança pode impactar tudo, pra sempre. Uma época eu tive sérios problemas com o entardecer, crises de choro e angústia aguda nesse horário, e uma tia e uma prima, sem nenhuma psicologia, apenas com sensibilidade e conhecimento de causa (elas já tinham atravessado seus próprios ocasos) me resgataram daquele sofrimento e isso mudou tudo pra sempre.

Existe o bicho papão e o velho do saco, e existe medo, terror, pânico, que interferem de fato na vida de uma criança. Seria melhor se a gente escolhesse não aprofundar o que já é tão apavorante.

Um dia eu já odiei ser chamada de histérica, agora eu amo o fato do meu nome caber em um trocadilho desses. Não ando de elevador, mas me mudo pra qualquer lugar do mundo sem piscar os olhos, e me adapto às circunstâncias como poucos que conheço. Não tenho nenhum medo de ficar sozinha, aprendo todo dia a lidar com as minhas vulnerabilidades, que são muitas, mas também com a minha força, porque frágil é tudo o que eu não sou.


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