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  • Foto do escritorEsther De Souza Alferino

Tristes trópicos crentes

Quando alguém falar que não gosta de crente, ou que Jesus é legal, mas o fã clube estraga, os crentes que têm um pingo de decência precisam aprender a segurar essa marimba e parar com essa de “mas nem todo crente”, porque fica igualzinho a macho, que quando a gente fala em cultura do estup

ro surge até do rejunte do piso pra dizer “mas nem todo homem”. É generalista, sabemos, mas ao contrário do que dizia Nelson Rodrigues, nem todo generalismo me parece burro, porque alguns são ilustrativos.

No Brasil de 2020 e em vários lugares do mundo, os crentes têm representado o que há de pior, mais cruel e desumano da sociedade. Marcha lado a lado com fascista, elege fascista, defende fascista, idolatra fascista do mesmo jeito que idolatra cantor pop gospel, tudo isso enquanto chama o amiguinho católico devoto de Nossa Senhora de idólatra. E você meu amigo, que adora a Ana Paula Valadão?! Enfim, nem quero falar da Ana Paula Valadão porque já ouço mentalmente aquela voz dela e isso vai estragar meu dia, se é que dá pra ter um dia que não seja estragado nessa distopia chamada 2020 com Bolsonaro presidente.

Falando em distopia, eu nunca fui muito fã. Faz pouco tempo que me permiti assistir e ler distopias, algumas que me agradaram profundamente, mas de modo geral nunca curti filmes pós-apocalípticos onde ninguém toma banho, as cidades foram todas devastadas por pessoas desesperadas de fome e doentes, vestidas com roupas estranhas. Ficção científica nunca foi meu gênero, porque o futuro sempre foi narrado de forma tão feia e desoladora, que sempre preferi me afastar daquilo, afinal, pra mim nunca aconteceria mesmo, pra quê sofrer vendo? Hoje talvez me permita assistir porque não sei mais se não vai mesmo acontecer. O que vivemos essa semana foi algo bastante The Handmaid’s tale, e Gilead parece ser aqui. E tinha o dedo de quem em tudo isso? Do povo de Deus, claro.

Eu acredito em Deus, e pra mim, hoje, Deus é amor e é paz. Mas nem sempre foi assim. Não por não acreditar em Deus, sempre acreditei, fui criada criança crente, desde antes de nascer, e assim me mantive até os 20. Nunca fui pentecostal, fui criada em igreja histórica tradicional (que hoje tem pouco de História e pouco de tradicional, mas não é mais problema meu) e então nunca fui daquelas pessoas que usa sai no pé ou não pode cortar o cabelo. Mas eu fui a criança que nunca dançou quadrilha, porque não se dança em festa de santo, na verdade eu fui a criança que nunca dançou, porque dançar também era errado, e a única vez que decidi fazer isso foi escondida dos meus pais, mas eles descobriram e teve castigo e drama.

Meu primeiro saquinho de Cosme e Damião comi aos 30 anos. Minha irmã comia escondido, eu não, tinha tanto medo, que eu realmente achava que me faria mal fisicamente ou que condenaria minha alma ao inferno. Falando em inferno, ele me atormentou muito, sempre morri de medo. A igreja fala muito de inferno, e às vezes pra uma criança isso nem sempre é muito esclarecedor, só dá medo mesmo. Inclusive, por que raios acham que é viável estudar na classe infantil da escola dominical o livro de Apocalipses?

Quando tinha 10 anos ganhei um vídeo cassete, ultra chique eu, com vídeo cassete aos 10, isso no meu meio era luxo. Combinei com um primo bem mais velho de alugar “O exorcista” e ver enquanto meus pais estivessem no trabalho, não sei porque raios a locadora também me deixou alugar aquele filme classificação 18, mas eram os anos 90 e nem sei se tinha classificação de filme naquela época. Aluguei a fita de VHS e meu primo medroso e peidão, adulto já ele, quero deixar claro, mas medroso e peidão, deu pra trás e não viu. Vi sozinha aquele troço e passei uns bons dias indo tomar banho com a porta do banheiro e do box abertas. Me assustou real! Eu já tinha visto vez ou outra algum episódio de suposta possessão demoníaca na minha igreja, mas em igreja crente o processo de exorcismo (nem usam esse nome, falam “expulsar demônio” mesmo) é muito diferente e não segue os protocolos do Vaticano, claro.

Aquilo na igreja sempre me assustou, sempre me deu medo mesmo, mas o filme elevou isso a outro patamar e eu comecei a acreditar que eu seria possuída e que ia manifestar toda santa vez que pisava na igreja. Isso durou anos, contei isso pra alguém pela primeira vez dia desses, nunca tinha admitido pra ninguém que a minha própria igreja e qualquer oração me davam medo de ser a pessoa que “deu abertura pro inimigo” e que ia manifestar com grunhidos e movimentos estranhos. Pra falar a verdade, até hoje isso costuma me vir a mente nas raras vezes que vou a igreja em casamentos e batizados, ou quando estou em algum lugar onde fazem uma oração. Aprendi que sou pecadora, e que o salário do pecado é a morte, e isso me guiou por anos, foi o medo do inferno que me manteve crente em muitos momentos, por isso digo que hoje Deus é amor e paz pra mim, mas um dia já foi medo.

Com isso estou dizendo que minha família errou em me levar à igreja e me criar com uma religião? De forma alguma. A religião também forma o que eles são e eles são amor, são a minha segurança. Eles fizeram exatamente o que deveriam fazer, apesar de eu achar que da escola dominical eu podia ter sido liberada, porque acordar cedo no domingo, por favor né.

Estou dizendo que eu, ainda criança, entendi Deus de uma forma estranha, que me amedrontava, que me botava medo, que me ameaçava do fogo eterno do inferno o tempo todo. Esse entendimento é meu, é pessoal e subjetivo, e sair da igreja foi a minha verdadeira salvação, sair da igreja foi minha verdadeira conversão ao Deus de amor e de paz, ao Cristo justo e piedoso, ao Espírito Santo consolador da minha alma sempre tão cansada. Sair da igreja me salvou de mim, de muitos medos e, pela Graça maravilhosa e imerecida, me salvou de hoje me sentar nessa roda de escarnecedores que se tornou a religiosidade cristã brasileira. Sempre que falo com Deus, com o meu Deus, com o Deus dos meus pais e dos meus avós, com o Deus do meu amor, eu agradeço pela Graça, a maravilhosa Graça que alcança alguém como eu.

As marcas dos medos e da culpa cristã ainda estão aqui, mas pela Graça estou salva, eu sei disso.

Na distopia chamada Brasil 2020 sob Bolsonaro, estou com os que dizem que não gostam de crente. Eu também não gosto não. Quando eles olharem pro espelho, talvez, apenas talvez, nem eles mesmos tolerarão.

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