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  • Foto do escritorEsther De Souza Alferino

Sobre o Enem, e mais uma coisinha ou outra

A espera pelo resultado do Enem pode ser dos momentos mais angustiantes do ano pra algumas pessoas. Não somente os jovenzinhos que, aos 17 anos, precisam escolher o que querem ser pro resto da vida (isso não apenas parece loucura, como de fato é), mas também pra algumas pessoas que tiveram seus sonhos adiados, às vezes muito adiados, e querem que essa tão esperada oportunidade de ingresso no ensino superior chegue.

É tudo muito ambíguo. Precisar escolher no início da vida adulta que carreira seguir é insano, mas não ter essa oportunidade justamente nessa fase da vida é injusto. A realidade é que viver nesse sistema é viver em uma máquina de fazer maluco, e estamos todos adoecendo.

Quem não tem acesso, está frustrado, sem expectativa, se sentindo um bosta; quem tem acesso, está desesperado com as escolhas que precisa fazer, com a pressão que sofre de todos os lados, pelas expectativas alheias que precisa atender, e às vezes está frustrado também, porque se dá conta de que não fez a escolha certa.

Deveria estar tudo bem perceber que não fez a escolha certa, deveria estar tudo bem não ser o objeto da expectativa dos outros, mas não está. Os filhos parecem nascer pra ser o que os pais não conseguiram, mas queriam ter sido. As pessoas sem acesso fazem o que conseguem, nem o direito de escolher tem, agarram qualquer oportunidade de se qualificar profissionalmente.

Isso traz tantas consequências...

Ontem assisti a live maravilhosa da igualmente maravilhosa Manuela Xavier (quem não conhece, segue no Instagram), a diva da psicanálise, sobre a “síndrome de impostora”, essa ideia de que somos na verdade uma fraude, que um dia nossa máscara vai cair e o mundo vai enxergar toda a nossa mediocridade. A fala da Manuela era para mulheres, porque nós somos criadas ganhando ferrinho de passar roupa e vassourinha, enquanto meninos ganham aviões e carros. Sim, amiguinhos, isso causa reflexos muito negativos na vida das mulheres, que quando se veem em alguma posição profissional de destaque, ouvem aquela vozinha no pé da orelha dizendo: você não foi feita pra isso.

Mas para além do universo feminino, da forma que criamos meninas e meninos, da divisão sexual do trabalho (aquela coisa que joga toda a responsabilidade doméstica e de cuidado das crianças pra mulher), existe a dimensão de classe, e é disso que eu geralmente falo aqui, porque é esse o meu lugar no mundo. Eu sempre costumo dizer: sou mulher, sou feminista, mas antes de qualquer coisa eu sou pobre, e a classe pra mim grita mais alto.

A síndrome de impostora afeta a todas as classes sociais, sem dúvida, inclusive ontem na live isso foi muito bem pontuado. Assim como o machismo, a síndrome de impostora é bem democrática e não escolhe classe, atinge a todas, mas não da mesma maneira. Quando você foi um dia a pessoa que precisou aproveitar a primeira opção que surgiu pra se qualificar profissionalmente, ainda que você se encontre naquele meio, ainda que você perceba que gosta e se dá bem fazendo aquilo, sempre tem aquela vozinha repetindo: “esse lugar não é seu, você não pertence a esse meio, de onde você tirou essa ideia louca de querer ser mais do que você pode?” Ah, essa vozinha, essa vozinha não se cala.

Não é nem um pouco fácil passar pela transição de posição social oportunizada pela educação. Você não manja de certas coisas, você não tem certo traquejo, você pode até estar inserido no mercado de consumo, mas te falta o habitus daquela classe, que não é sua. Não é vitimismo dizer isso, é a vida r

eal, e é a vida real pra muita gente, desde que aconteceu alguma democratização de acesso à educação. A ideia de que tem gente que chegou pronta, porque foi treinada pra isso por toda a vida, e você não, não é uma ideia fácil de abandonar. Mas e pensar sobre que bosta de vida pode ter sido a de quem foi treinado pra algo pré-determinado, será que a gente consegue? Eu tenho muita dificuldade, confesso.

Nos espaços acadêmicos do Brasil dos anos 2000, muitos distanciamentos ficaram claros, o tamanho da falta de perspectiva das classes baixas ficou muito evidente, o tamanho das expectativas em torno de algumas pessoas de classes privilegiadas é gritante, e, no fim, parece que estamos todos adoecidos. Os privilegiados, os muito privilegiados e os desprovidos de privilégios.

Duvidamos todos de nós mesmos, duvidamos todos da nossa capacidade. A cada linha que escrevo da minha dissertação de mestrado, apesar de estudar mais que muitas pessoas que eu conheço, o único sentimento é de completa incapacidade, a ideia fixa de ser uma fraude é um tormento. Infelizmente não estou sozinha nisso.

Não vou chamar a academia de tóxica (odeio essa palavra e já falei aqui sobre isso, não estudo em Chernobyl), também não tenho a menor pretensão de revisar as formas de validação de um sujeito a partir do seu sucesso ou insucesso profissional, eu só quero mesmo desabafar, depois de tudo que pensei ontem, a partir da live, das coisas que ouvi, que li, sobre o que tenho sentido.

Acho que também é importante dizer, pra tantas pessoas que vão até ter piriri de nervoso essas semanas, somos todos mais que uma prova, mais que a graduação inteira, mais que a dissertação do mestrado, a aprovação no doutorado ou no concurso público, títulos ou qualquer outra coisa. Nós somos tão plurais, isso tudo é só uma parte da nossa vida, importante, mas só uma parte. Não é uma prova que me define, uma prova não é toda a minha vida, eu sou mais do que isso, mesmo duvidando de mim mesma a cada segundo.

A educação é sim transformadora, e é nela que eu acredito como oportunidade de mudança. Mas isso não deve ser a razão da nossa angústia e adoecimento. Ao menos não deveria.

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