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  • Foto do escritorEsther De Souza Alferino

Papo de pelicano

Existe algo importante sobre mim, especialmente pra quem já me conheceu adulta: eu fui uma criança um tanto estranha. Dia 18 de dezembro de 1997, meu aniversário de 10 anos, meus pais chegaram a casa no fusca bege que meu pai tinha na época, ou era o marrom? Não sei, meu pai teve dois fuscas, e se eles falassem... Enfim, chegaram os dois da rua com meu presente e era nada mais nada menos que um videocassete. Gente, ter um videocassete aos 10 anos, ali na minha realidade, era um negócio de louco pra mim. Eu lembro que algumas amigas de escola iam assistir filme lá em casa, porque só eu tinha videocassete.

Lá no bairro Aeroporto, em Itaperuna, onde fui criada, tem a minha rua, a Rua Bom Jesus, ela é bem grande, e nós tínhamos conta na locadora que ficava na mesma rua, mas era bem longe, uma boa caminhada a pé, mas era uma caminhada bem feliz, porque não bastava eu ter um videocassete, meu pai colocou na locadora meu nome autorizado a locar filmes na conta dele. Tinha que devolver rebobinado, se não pagava multa. Foi assim que vi, por exemplo, O Exorcista, enquanto meus pais trabalhavam, sem eles desconfiarem que eu aluguei aquilo.

Sexta-feira era aquele dia mágico de alugar um lançamento, levar um velho de brinde e só devolver segunda, devidamente rebobinado. Aí agora eu explico porque fui uma criança estranha: eu gostava de filmes que não tinham absolutamente nada a ver comigo, com a minha vida, minha idade. Minha irmã sempre foi criança que vive a infância, toda semana ela queria alugar a Turma da Mônica. Eu queria saber qual era o lançamento com Leonardo di Caprio, meu ídolo infanto-juvenil, e queria ver os dramas, romances e filmes de ação do momento, e isso nem fazia sentido, porque vários deles eu não conseguia alcançar.

Hoje uma querida postou sobre o filme “O dossiê pelicano”, clássico do início dos anos 90, que provavelmente aluguei como brinde antigo para o lançamento. Tinha Julia Roberts, minha diva de Uma linda mulher, tinha o Denzel Washington, que eu tinha visto em Filadélfia (outro filme que acho que estava além da compreensão infantil da menina que fui nos anos 90), e que depois me deixaria perplexa em O colecionador de ossos (um dos meus suspenses preferidos até hoje), e me faria chorar o mundo em Um ato de coragem.

Eu revi O dossiê Pelicano pouco antes da pandemia começar, cerca de 20 anos depois de ter visto pela primeira vez. Fez muito mais sentido agora, claro. Na verdade, ele fez sentido de fato agora, não porque eu era burra aos 10, mas porque era mesmo imatura e não tinha nenhum tipo de capital cultural pra absorver nada daquilo, o filme, naquela época, não me cativou porque eu era alguma espécie de gênio mirim que entende complexidades, mas porque é daqueles filmes que dá frio na barriga, causa aquela ansiedade boa pela próxima cena. A mocinha vai conseguir? Ela vai se apaixonar por ele? Eles vão escapar? A verdade prevalece no final?

Agora, daqui dos meus 32 anos, vivendo no Brasil de 2020, assistir O dossiê pelicano é avassalador. Mesmo pra quem já viu à época de seu lançamento, ou em algum outro momento da vida. Dá uma olhada nele novamente. Assiste de novo aquela trama de podridão de bastidor de poder. Cheia de estereótipos, clichês, cenas fantasiosas, mas Hollywood é isso, não é possível que em pleno 2020 ainda não tenhamos nos dado conta de que é assim. Nada disso diminui o enredo bem construído e a trama que nos prende, mesmo aos 10 anos de idade, sem nem saber ainda sobre a divisão de poderes.

O nome do filme só faz sentido do meio pro fim, em uma cena ele é explicado.

Nessa distopia de péssimo gosto que vivemos hoje, com direito a crise sanitária, que é, acima de tudo, humanitária, não sei ainda qual seria o título, porque por enquanto nada faz sentido.

A crise, até agora, me parece política, econômica, ética, humanitária, moral, estética (sim, meus amigos, estética), e de crenças.

Será que teremos um Dossiê Pelicano? Ao que parece, já tivemos alguns, e ninguém se importa.

Atualmente só quero chegar viva a 18 de dezembro de 2020, porque quero fazer 33 e lembrar que aos 10 ganhei um videocassete, e até hoje é um dos melhores presentes que ganhei na vida.

P.S.: o filme está na Netflix.


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