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Foto do escritorEsther De Souza Alferino

Não cala a boca, parece um rádio.

Antes de qualquer coisa, quero registrar que tudo que for dito (escrito, no caso) a seguir, é em homenagem à minha bisavó Conceição, e eu explico.

Vó Conceição, falecida já há mais de 10 anos, era avó materna do meu pai, e, possivelmente a pessoa nesse mundo que mais gostava de falar. Ela era mais do que apenas “conversadeira”, ela era indiscreta nas perguntas o quanto queria ser, ela interrompia todo mundo, ela queria falar e falar, essa era a ânsia da minha bisavó. Claro que isso incomodava dez entre dez pessoas que precisavam conviver com ela, porque de fato era cansativo na maior parte do tempo, e a gente sabe que paciência pra conversar com velho é algo que pouca gente tem, imagina uma que fala basicamente sozinha e quase sem pausas pra respirar?!

Muitas piadas existem em torno dessa característica da vó Conceição, mesmo depois de mais de uma década da morte dela. As vezes me parece que tudo que a vó foi nessa vida se resume ao fato dela ter sido alguém que falava demais. A vó era tão mais do que isso. Não sei quantos filhos ela teve, não lembro agora de cabeça quantos irmãos minha avó tem, mas não foram poucos, e em meio a bastante pobreza, ela criou todos como pôde. Meu bisavô, que me conheceu, mas de quem não me lembro, teve o que naquela época as pessoas chamavam de derrame, hoje usam mais AVC (é a mesma coisa né?!), e em seguida um dos filhos dele e da vó Conceição teve o mesmo. Ela cuidou dos dois. Praticamente sozinha. Ela ficou viúva, enterrou esse filho, enterrou neto, viu bastante gente importante pra ela ir embora, é o preço de viver bastante, eu acho... Morou sozinha por anos, mesmo morrendo de medo de chuva e trovão.

Aí ela ficou doente, doente do jeito que minha vó está hoje, não sabia mais quem nós éramos, não podia mais viver sozinha, não se dava conta de que chovia e trovejava, não levantava mais da cama, não falava. A mulher que eu mais vi falar na vida morreu quase muda. Tanto reclamaram, tanto reclamamos que ela não fechava a boca, que no final fomos todos privados da voz dela. Filhos, netos, bisnetos e tataranetos, porque sim, minha vó Conceição viveu pra ver tataranetos, e isso, meus amigos, é pra poucos, pouquíssimos.

Eu tô aqui falando tudo isso da vó Conceição porque eu também falo demais, sempre falei. Quando as pessoas querem me repreender ou ofender por isso me chamam imediatamente “ô neta da Dona Conceição”. “Neta da Dona Conceição, para de falar um pouquinho”, “neta da Dona Conceição, dá um tempo”, “neta da Dona Conceição, respira”, “neta da Dona Conceição, você fala demais, diminui”.

Ser repreendida por falar demais sempre foi um terror e uma vergonha enorme pra mim. Sempre me esforcei, e ainda me esforço muito, pra falar cada vez menos, não porque falar é ruim, não porque eu penso que não tenho o que dizer, mas porque eu sempre tive (e confesso, ainda tenho), vergonha de ser “faladeira neta da Dona Conceição”.

Dia desses uma pessoa que também pensa que fala muito me disse que eu quase não falo, que fico só ouvindo. Gente, vocês não fazem ideia do quanto eu esperei por esse elogio. Quase 32 anos. E sim, considerei um elogio, me senti lisonjeada, feliz, como se, finalmente, tivesse conseguido superar minha compulsão pelas palavras ditas.

Porque quando você toma a fama de pessoa que fala demais, não importa uma gota da sua discrição ao tratar os assuntos alheios, não importa cada segredo que você guarda, não importa cada pessoa que você nunca expôs com suas palavras, não importa se o que você fala é ou não maldoso, envolve ou não a vida alheia. Você é só a faladeira. Não importa pra quase ninguém minha vó Conceição ter cuidado sozinha de dois homens acamados, e de si mesma, já em idade avançada, ter enfrentado a pobreza e criados seus filhos. Importa que ela era a velha faladeira, muito chata.

Quando você é a faladeira, não importa se você passou a vida sabendo de coisas sobre as quais nunca mencionou, quando qualquer assunto começa a circular, você é a principal suspeita de ter dado com a língua nos dentes, afinal, falar é o esporte que você pratica, então porque pensar que quem espalhou a maledicência foi uma pessoa blasé qualquer, se quem não para nem pra respirar é você?!

Falo, falo muito, falo pra caralho (ahhhhh, na minha família as pessoas não falam palavrão, menos a vó Conceição, ela falava, falava vários, inclusive acho que foi a primeira pessoa adulta que vi falar um palavrão sem o menor pudor ou vergonha), falo sem pausa pra respirar. Porque a boca é minha.

Perdão vó Conceição, perdão muito atrasado, por já ter tido vergonha de ser chamada de sua neta. Prometo que, ao invés de me esforçar pra falar menos, vou me esforçar pra deixar de ter vergonha de ter bastante o que dizer. Porque tenho mesmo. Quem não quiser ouvir que saia de perto, ou tape os ouvidos.


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