Aqui onde eu vivo a passagem custa 2,75. Não 2,70. 2,75; então, a menos que o cobrador seja aquele cara maneiro que me vê todo dia (não é meu caso, pego ônibus diferentes), ele não vai me deixar passar a roleta com menos que o valor inteiro da passagem. Tem dias que o valor todo da passagem é um desafio pra várias pessoas, vasculhando pelos bolsos de todas as calças alguma moeda perdida. Gente muquirana é chato, muito chato, mas eu consigo compreender quem dá valor a cinco centavos, porque sabe que vai fazer falta.
Eu vivi boa parte da vida vendo pessoas envergonhadas da própria condição financeira, querendo ascender, mudar de vida, parar de passar perrengue. Algumas inclusive mentiam ou omitiam certas coisas, por vergonha mesmo, porque TER mais era importante. Aí eu me vi em meio a estudantes universitários, boa parte deles advindos de classes mais privilegiadas, não daquelas dominantes, apenas privilegiadas mesmo, aquele povo que já fez sua primeira viagem internacional, que estudou na Cultura Inglesa, fez escola particular a vida toda, não precisa da bolsa da assistência estudantil e sempre tem grana pra beber nas festas, sabe?! Eu já estava lá pelos vinte e tantos e pela primeira vez na vida, vi gente com boas condições materiais querendo se passar por pobre.
Confesso que me chocou. Confesso que ainda me choca, anos depois. Querer parecer pobre, que coisa mais sem sentido. Mas claro, sem abrir mão de um privilégio sequer, sem passar perrengue em suas “”aventuras”” e indo, inclusive, encontrar o “eu interior” em uma viagem cara.
Alguns falando em nome da classe trabalhadora sem ter ao menos ido fazer a carteira de trabalho, assim, só pra disfarçar né, ao menos tenha uma carteira de trabalho. Depois que aprende o que é mais-valia começa a usar o termo pra tudo, porque, de repente, se descortina pro jovem médio a opressão, mas é opressão que ele não vive, não viveu, e talvez nunca venha a viver, então porque razão reivindicar esse direito de dar voz aos oprimidos? (Não se preocupem, não vou entrar em maiores questões sobre lugar de fala, assunto tão polêmico).
Talvez isso tenha a ver com culpa, culpa por ter privilégios, culpa por saber que explorou e explora pessoas, mas com a culpa o que vem? Revisão de privilégios? Mudança no estilo de vida pra ao menos passar a lavar as cuecas/calcinhas que suja? Não, não mesmo. O que vem com essa culpa é um cosplay de pobre.
Eu conheço vários cosplays de pobre, e o pior, são super mal feitos, porque a forma fetichizada que o pobre é visto por eles inclui desleixo com higiene (pobre é limpo pra caralho), descuido com própria aparência (pobre remenda roupa, não anda por aí rasgado), e um superficial desprezo por dinheiro e pela importância que as pessoas dão a ele. Superficial pra não dizer falso, porque a mesada cai na conta, a tela do celular quebra toda semana e é sempre substituída, algumas substâncias custam caro, bem como o analista e a terapia holística.
A ideia que se faz do pobre é essa, a pessoa suja, maltrapilha, que vive na sujeira, o próprio Jean Valjean; e isso é reproduzido como fetiche mesmo, demonstrando o tamanho da falta de conhecimento sobre as classes baixas.
Pobre gosta de casa limpa, casa arrumada, TV de 42”, maquiagem e salto alto, carteira assinada e um carrinho na garagem. E trabalha muito pra isso, muito mesmo, de um jeito que algumas pessoas nunca vão saber, inclusive eu. Pobre quer melhorar de vida, quer sair do aluguel, quer que a mãe também saia do aluguel, quer poder ir em Rio das Ostras no feriadão, beber cerveja e comer camarão. Pobre não quer precisar catar cinco centavos nos bolsos das calças jeans pra não ter que ir pro trabalho a pé. Pobre gosta de dinheiro e quer dinheiro, e não tem problema nenhum nisso.
Só diz que dinheiro não traz felicidade quem nunca sentiu a falta dele. A falta de dinheiro é causa de depressão, suicídio, ansiedade e mais trocentros distúrbios que poderiam ser evitados se a dignidade da pessoa humana, que nessa sociedade só existe com dinheiro, estivesse garantida. As pessoas não vão criar uma comunidade colaborativa e parar de precisar de dinheiro não, gente, não viaja. O capitalismo é uma merda, deu errado, mas ele é máquina de moer pobre, ele não é máquina de moer seu mestrado na Europa não. As pessoas estão adoecendo, adoecendo severamente por estarem à margem, e tem gente repetindo o mantra do dinheiro não traz felicidade. Ah, e por favor, não tô aqui sendo aquela que diz que é melhor chorar de tristeza em Paris que em Japeri, até porque, se chora muito nos subúrbios de Paris, e não é de felicidade.
Quando a miséria entra por uma porta, o amor sai pela janela, como diziam os antigos lá do interior de onde eu vim. E não é isso infelicidade?
É indigno menosprezar isso, assim como é indigno se fantasiar de pobre pra amenizar a culpa de crasse mérdia.
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